De simples guia vegano de Brasa City, o Distrito Vegetal foi sofrendo mutações diversas até virar esse ser amorfo de hoje, que compila dicas, caça-mitos, resenhas, scene reports e tudo mais que der na telha sobre veganismo e a nossa cidade cemitério.
Pra quem freqüenta o blog há algum tempo, não deve ser novidade o espaço de reflexão cada vez maior nos artigos do DV. Geralmente eu contrabandeio um pouco de ontologia disfarçada de resenha de pizza ou empresto um pouco de metafísica fingindo que estou apenas falando de leites vegetais. É uma estratégia que tem funcionado bem, mas eu pensei em ser um pouco mais explícito dessa vez.
Eu tenho um ponto de vista bastante particular sobre esse estilo de vida, e pensei em estruturar em três pequenos pontos coisas que me motivam ou que incomodam quando as próprias pessoas que se dizem veganas falam sobre veganismo.
De maneira alguma entendam isso como uma receita ou mesmo uma imposição de visão de mundo. Esse é inclusive um dos pontos de reflexão e árdua tarefa, pensar e falar sobre veganismo sem querer promover a e-vegan-lização.
Três rápidas reflexões (para três tristes vegans)

Menos identidade, mais solidariedade
Uma das coisas que parece ser mais bacana quando você começa a cultivar o veganismo é que você passa a fazer parte de um grupo de pessoas legais, certo? Não sei. Eu sei que é uma sensação legal, você pode usar seu casaco de moletom escrito VEGAN e se sentir parte de uma coisa maior que você. Mas, sendo sincero, eu tenho forte desconfiança sobre essa história de enquadrar o veganismo como uma mera política de identidade. Se eu tivesse que escolher, eu diria que mais prejudica do que ajuda “a causa”.
Isso porque quando você enquadra e define o veganismo nesses termos, de quem “é” ou “não é” vegan há uma série de situações e contextos que são excluídas e desmotivadas. Poxa, veganismo é sobre promover solidariedade entre animais ou entendi errado? Isso inclui as relações inter-espécies, mas intra-espécies. Significa promover solidariedade entre pessoas também.
Um exemplo. Nesses anos todos de veganismo, quantas vezes eu já ouvi a frase “Não adianta de nada parar de comer carne, mas consumir leite. É tão cruel quanto.” Caracas, a impressão que eu tenho ao escutar coisas do tipo é que essas pessoas querem o veganismo como um clubinho fechado que só algumas pessoas muito especiais podem ter acesso. Poucas frases podem ser tão bem-intencionadas, mas tão desastrosas quanto essa.
Já recebi emails de pessoas dando dicas vegetarianas, mas se desculpando por não serem vegans, dá pra acreditar? Já conversei com amigos que se sentiam totalmente desmotivados em tentar uma dieta vegana porque não sabiam se iam conseguir “ser” vegan, então era melhor nem tentar. Você transforma o veganismo num altar, quanto mais difícil de alcançar melhor, e isso acaba desestimulando um monte de gente que se interessa pelo tema. Pra essas pessoas, eu gostaria de dizer que cada esforço conta, cada pequeno gesto pode ser importante e nada mais justo do que fazer o que conseguir e estiver dispostx.
Não precisamos pensar no veganismo como um bloco estático de normas, pode ser um conjunto dinâmico de práticas. Eu prefiro pensar assim.
Menos universal, mais local
Caminhando nessa direção, por um mundo menos emblocado, não consigo deixar de me incomodar com aquelas pessoas que entendem o veganismo como uma verdade universal que deve ser aplicada a todas as pessoas em todos os contextos. Se o veganismo é sensível a toda a dor e opressão de um mundo especista, também deveria ser sensível a toda exclusão de um mundo classista, racista, etc.
Promover um veganismo sem sensibilidade a contextos é querer transformá-lo em uma bela vuvuzela da política liberal. É propagar uma ideia mentirosa de que sempre é possível fazer uma escolha. Nesse caso, uma “escolha vegan” (já soa como propaganda de escova de dente). Dizer isso é perverso, porque você iguala o poder de decisão política com um poder de consumo. A conseqüência cruel é que quem não pode consumir determinados produtos, não pode agir politicamente. O horror, diria capitão Kurtz.
Mas eu confesso que é um exercício complicado mesmo. Acreditar que uma determinada conduta é a mais correta eticamente e ao mesmo tempo não querer impô-la ao mundo parece ser muitas vezes impossível. Só que acho importante refletir que essa maneira monolítica de entender a ética foi justamente a responsável por segregar humanos e não-humanos em um primeiro momento. E a gente quer mesmo tentar usar as armas do senhor de engenho pra desmontar a senzala?
Essa aspiração por universalidade costuma cair muito numa ideia de veganismo como exercício de pureza, ou purificação. Bem, isso pode ser bem comum, mas, cá entre nós, é bobo em última instância. A não ser que você esteja acessando esse blog a partir da energia solar gerada pelas placas DIY da sua comunidade anarcohippie, não existe vida fora do Capital. Aquela delícia de leite de soja cruelty free que você come todo dia com seus sucrilhos cruelty free também é fruto de um sistema de exploração.
Não existe “vida sem crueldade” pra valer. Mas isso significa desistir, lamentar e choramingar? Não, porque ninguém aqui tem mais 13 anos, né? Significa entender a complexidade das questões que estamos lidando diariamente, e ao invés de querer exorcizar as contradições, saber conviver com elas.
Como diria a Carol Adams, o veganismo é uma espécie de trato pessoal para se fazer o menor dano possível. E eu tenho certeza que a Carol mesmo seria a primeira a admitir que o veganismo da madison square garden não pode ser o mesmo do pavão-pavãozinho.
Menos dever, mais devir
Quanto de cristianismo tem o seu veganismo? Essa minha pergunta não tem nada a ver com acreditar em deus ou não. Eu me refiro a quanto de resignação, culpa, proibição e desejo reprimido seu veganismo promove. Eu sei que eu quero um veganismo livre, leve e solto de tudo isso aí.
Mas eu sei também que tem gente que gosta muito de cultivar um veganismo-sofrimento. Veganismo em que o foco está na repressão da vontade de comer certas coisas e não no prazer de comer outras. É bacana pra quem acredita nisso porque assim o veganismo vira uma espécie de “heroísmo moderno e incompreendido”, uma tarefa árdua e complicada. Desnecessário dizer que eu considero isso elitista, desinteressante politicamente e totalmente sem-graça, né?
De qualquer maneira, é curioso perceber como essa visão de veganismo cai bem com os sistemas tradicionais de ética, que costumam funcionar sempre com imperativos. Nesse tipo de relação com o mundo, o certo e o errado estão mais em função de uma punição ou recompensa de uma autoridade do que qualquer outra coisa. E o mais chato é que na questão animal, tanto os “bem-estaristas” ou “direitos dos animais” parecem andar de mãos dadas nesse ponto. Ninguém parece oferecer nada de novo. Apenas divergências no que se “deve” ou “não se deve” fazer.
Pra mim, o imperativo é a receita para mitigar os desejos. E aplacar as vontades é o passo anterior à apatia, ao cinismo e a todo o derrotismo político que eu detesto. Eu realmente só acredito no poder de transformação política que envolva os nossos desejos. O capitalismo é esse monstro bem-sucedido exatamente por ser essa máquina incessante de produzir desejo. Como que a gente pretende encarar ela de frente com resignação e repressão?
Eu realmente acho que esse não é o caminho. Muito melhor do que reprimir os desejos que o mundo me impõe, é criar e contaminar o mundo com os desejos que eu acho bacana.
E é exatamente isso que eu tô tentando fazer aqui.
xxx
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