Quem já não conheceu alguém que se diz vegetarianx, mas gosta de “comer um peixinho”?
Acredito que essa desassociação entre peixes e outros animais costuma vir de uma falta de identificação (antropocêntrica) com esses seres de guelras que não conseguem nos lamber, abanar o rabo ou demonstrar qualquer tipo de afeto a humanos. O que eu acho ótimo, já tem gente demais tentando nos dizer que somos o máximo. Já deu, né?
Bem, pra essas pessoas o artigo recém públicado na Revista de Etologia, “Bem-estar animal: um conceito legítimo para peixes?” pode ser bem interessante. O texto também pode ser bacana pra quem gosta de alimentar seu vegetarianismo com bons argumentos embasados cientificamente. Não é exatamente o meu caso (sou um pouco descrente da razão), mas isso não significa que eu não ache legal me informar um pouco e passar essas informações adiante.
Dá pra ler o artigo completo aqui: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1517-28052006000100006&script=sci_arttext
Chamo atenção pra um trecho:
O estudo da percepção da dor, cuja dimensão consciente a distingue de nocicepção, tem originado recentemente um interesse particular no contexto de averiguação da capacidade de sofrimento em peixes (Rose, 2002; Sneddon, 2003; Sneddon et al., 2003). Os estudos realizados por Sneddon e colaboradores na truta arco-íris (Sneddon, 2003; Sneddon et al., 2003) demonstraram um sistema nociceptor semelhante ao de outros vertebrados, ou seja, a existência de nociceptores na pele e dos dois tipos de fibras do nervo trigeminal que conduzem a informação nociceptiva ao cérebro. Os mesmos autores identificaram um conjunto de comportamentos em resposta à estimulação nociva, indicadores de processamento cerebral, entre os quais se destacam a alteração do comportamento alimentar, o aumento do ritmo respiratório, o repouso com balanceamento do corpo no substrato, e a fricção das áreas do corpo afectadas nas paredes e substrato do aquário. Sneddon (2003) mostrou o efeito analgésico da morfina à resposta comportamental a estímulos nocivos em trutas. Chandroo et al. (2004) refere vários estudos em teleósteos que comprovam a produção de opiáceos, com funções de mediação da dor, e a existência dos seus receptores específicos. O mesmo autor menciona trabalhos que demonstram a forma como estímulos nocivos, potencialmente causadores de dor, são facilitadores de certas formas de aprendizagem.
O medo é uma emoção que, como as demais, resulta em alterações fisiológicas e comportamentais na sequência da percepção de um estímulo perigoso. Os indicadores de medo que têm sido referenciados para peixes incluem o aumento da taxa respiratória, a produção de feromonas de alarme e reacções comportamentais de aversão, nomeadamente a fuga rápida e o distanciamento (Chandroo et al., 2004; Yue et al., 2004). Usando um paradigma de condicionamento operante e clássico, Yue et al. (2004) demonstraram como trutas arco-íris aprendem, através de uma associação de estímulos, a evitar um evento percepcionado como perigoso, sendo capazes de aprendizagem envolvendo memória de longa duração. O tipo de resposta comportamental exibida (fuga) mostrou ser flexível e adaptativa, pois o seu tempo de latência variou com a exposição ao estímulo, sendo menor quando na presença do evento adverso (estímulo não condicionado) do que relativamente ao estímulo condicionado (que originalmente antecedia e sinalizava a ocorrência do evento adverso). Também Sneddon et al. (in press, citado por Braithwaite & Huntingford, 2004) demonstraram como um estímulo normalmente provocador de comportamentos de aversão causou uma resposta reduzida em trutas arco-íris previamente expostas a um estímulo nocivo (potencialmente causador de dor). Este efeito foi revertido, aumentando a resposta ao medo, mediante a administração de um analgésico (morfina).
E é claro, para a conclusão do artigo:
As evidências apresentadas acerca da dimensão psicológica do stresse, dos estados motivacionais afectivos que gera, das motivações comportamentais e das funções cognitivas dos peixes, sugerem fortemente a existência de senciência, donde decorre a legítima aplicação do conceito de bem-estar a este grupo de animais. A existência de senciência confere aos peixes um estatuto moral com implicações éticas na sua protecção. Apesar de a legislação já englobar a protecção de todos os vertebrados, existem ainda inúmeras questões acerca do bem-estar de peixes que importa esclarecer, sendo a formulação de recomendações para a manutenção e tratamento destes animais em cativeiro uma necessidade cada vez mais pertinente.
Só não acho também que a solução bem-estarista é satisfatória para pensar nossa relação com os animais. Mas isso é uma conversa para outro post.
Por enquanto, só fica a dica: pense bem antes de sair cantarolando por aí que “é ok comer peixes porque eles não tem sentimentos”.
PS: essa sugestão de artigo foi enviada de forma muito simpática pelo Rowws, se você quiser sugerir algo pra ser publicado aqui, só mandar pra poneteo@gmail.com
PS2: pra quem quiser ler uma boa descrição da criação industrial de peixes, sugiro a leitura do livro “Comer Animais”, já recomendado aqui no DV.